Apesar de três décadas nos separarem do último ciclo de imprensa alternativa no Brasil e no mundo, quando circularam jornais importantes como Movimento, Opinião, Coojornal e Pasquim, as principais razões da crise de Carta Maior lembram as que levaram ao desaparecimento de quase todos aqueles jornais: esgotamento do projeto político e dificuldades de gerenciamento de uma aventura alternativa num ambiente capitalista. São razões portanto recorrentes, inerentes à natureza do alternativo.
O alternativo é diferente não só nas suas idéias contra-corrente, também na sua organização, em que predominam o voluntarismo e a cooperação não monetária, e no envolvimento emotivo dos seus jornalistas. No alternativo, a notícia não é mercadoria: é valor de uso e não de troca. Não há nada mais anticapitalista do que isso, ainda que o alternativo tenha que pagar alguns salários e aluguéis, usar alguma publicidade.
Com a eleição de Lula e de tantos outros líderes populares na América Latina, em especial a de Evo Morales na Bolívia, levando pela primeira vez um índio à presidência, viramos, por assim dizer, quase-governo. O novo quadro exige um grande amadurecimento e uma postura que nós, oposicionistas por construção e hábito, temos dificuldade em adotar. Mesmo porque a situação é quase única: trata-se de continuar perseguindo a utopia em uma situação nada utópica, na qual nossos amigos e companheiros, inclusive nosso companheiro Lula, são governo. Trata-se de entender a importância transcendental do governo Lula no Brasil e na América Latina, sem cair no mero governismo ou na solução fácil de alinhamento com uma das tendências do PT ou um dos grupos de articulação de poder no governo. Com a chegada ao governo das novas lideranças latino-americanas, a começar por Lula, também se esvaziou em parte a idéia central do Fórum Social Mundial de fazer política apenas nas organizações de base, não governamentais e nos movimentos sociais, relegando partidos políticos e programas político-ideológicos estruturados a segundo plano.
E o que o governo tem a ver com a crise de Carta Maior? Se ajudamos a eleger esse governo, como de fato ajudamos, qual deveria ser a postura do governo frente ao risco de fechamento de Carta Maior? A máquina do governo também precisa entender o novo momento. Esgotou-se o tipo de apoio que davam a projetos alternativos, obtido sempre a fórceps, irregular, quase como um favor. É mais do que hora de criar políticas públicas de apoio à imprensa experimental, alternativa, regional e cultural, para que esses apoios sejam de caráter universal, e de interesse público. Entre essas propostas está a do vale-jornal, que daria a todo cidadão sem recursos suficientes um vale para receber o jornal de sua preferência. Essa proposta já estava em grau avançado de elaboração. Numa primeira fase, receberiam o vale jornal cidadãos já cadastrados em programas sociais, por exemplo, estudantes inscritos no programa Prouni. Os jornais também entrariam no programa segundo alguns critérios, como o de acrescentar uma página de noticiário em linguagem mais acessível e empregar mais um jornalista na sua redação.
Bernardo Kucinski
é jornalista e professor da USP e editor-associado da Carta Maior.