Desastre revela urgência da reforma urbana

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Depois da tragédia, o Rio tem sido inundado de solidariedade, mas também de desculpas esfarrapadas e atribuição de culpas para todos os lados. A chuva, o povo, e, principalmente, os outros, são sempre estes que deixaram tudo isso acontecer. O País foi capaz de elaborar uma lei de responsabilidade fiscal, mas ainda não uma de responsabilidade social.


Com fundo na política neoliberal de redução do Estado, pune-se o governante que gasta muito – mas não o que gasta pouco ou o que gasta mal. O abandono progressivo do Estado é visível no liberalismo que toma conta da fiscalização da ocupação imobiliária. Parte significativa das regras existe justamente para ser burlada ou contornada, às vezes com a própria anuência ou estímulo do poder público.


Para a habitação popular, os recursos sempre minguam, nunca são suficientes. Não estranha que os mais pobres acabem por morar em localidades irregulares, em morros, em encostas, em represas, em mananciais, e até junto a linhas de trem.


A excessiva valorização dos terrenos nas cidades vai, paulatinamente, expulsando os moradores de baixa renda para lugares inóspitos e insalubres. Ou o entulhar de milhões de pessoas nos morros cariocas é algo que se deve achar normal? Se a tragédia atingiu a região serrana, imagina-se o que aconteceria se se reproduzisse na capital?


O Estado deve intervir urgentemente na urbanização das cidades, principalmente privilegiando a habitação popular. Urbanizar moradias da população carente, gigantesca nesse país, é muito mais importante do que construir estádios ou abrir grandes avenidas. Que as desgraças que sofremos neste começo de ano, não sirvam apenas para por à prova a incúria das autoridades ou a imensa solidariedade do povo.


Que as águas levem junto com elas, a equivocada proposta de reformar o Código Florestal, fragilizando a proteção da natureza, de acordo com os interesses da especulação rural. E que tragam de volta a ideia de reforma urbana, sempre cercada de preconceitos por todos os lados. A reforma urbana é delicada, difícil, demorada e custosa. Mas sem ela, vamos continuar assistindo a conseqüências devastadoras, que não poderão ser atribuídas apenas ao mau humor do tempo.


A dimensão das perdas humanas no terremoto do ano passado no Haiti, já deveria ter nos advertido: a natureza castiga, mas a desigualdade castiga muito mais.

Marcelo Semer – Juiz de Direito e foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de “Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho”