Já se passaram exatos 20 anos desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, no abismo entre o que a lei determina e o que acontece na prática, estão os meninos e meninas do semáforo, em situação de mendicância ou trabalho infantil. Somam-se a eles crianças e adolescentes vítimas de violência, sem acesso à cultura, saúde ou educação de qualidade. Tem ainda aqueles que vivem em abrigos por vários anos, sem direito à convivência familiar e comunitária, sem saber do afeto e do amor de mãe, de pai. E todas aquelas que dia a dia têm seus direitos negados.
Certamente, é importante lançar um olhar sobre a condição de miséria e pobreza da população, uma vez que as desigualdades sociais exercem influência sobre as situações de risco, deixando crianças e adolescentes expostos ao trabalho infantil, à violência, abandono, negligência, abuso e exploração sexual, entre outras violações.
Sancionado em 13 de julho de 1990, o ECA é a regulamentação dos artigos 227 e 228 da Constituição que estabelece como “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Com duas décadas de vigência, pontos considerados essenciais para garantir os direitos dos menores no Brasil ainda aguardam regulamentação. Para especialistas, a educação para menores infratores e o funcionamento dos conselhos tutelares são algumas das questões que demandam a criação de regras mais claras.
Somente na Câmara dos Deputados, tramitam 169 propostas que alteram o ECA. Regulamentar significa criar regras, por meio de uma nova lei, decretos ou resoluções, para possibilitar o cumprimento da legislação.
MENORES INFRATORES – Segundo Carmem Oliveira, subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), um dos principais pontos que ainda precisa ser regulamentado é como possibilitar a escolarização e profissionalização de menores infratores que estão internados em instituições.
Já a juíza Brigitte Remor de Souza May, que integra a diretoria da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP), disse que a regulamentação da educação para jovens que cumprem medidas socioeducativas é importante, mas ela destaca que esses adolescentes representam um grupo pequeno perto dos demais que também precisam de políticas públicas. “As pessoas acham que adolescentes são grandes responsáveis pela violência, mas representam pouco em relação aos adultos. Na internação, o problema não é só a educação, mas a saúde, a profissionalização”, destaca.
Brigitte May afirmou que é preciso criar meios para prevenção da violência, como criação de escolas integrais e medidas para evitar evasão escolar e gravidez entre adolescentes.
CONSELHOS TUTELARES – Carmem Oliveira, do Conanda, disse que outro ponto importante para a aplicação do ECA é assegurar o devido funcionamento dos conselhos tutelares. Ela afirmou que, na avaliação do governo, a falta de estrutura dos conselhos prejudica a implantação de políticas públicas e a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. De acordo com a lei, as prefeituras são responsáveis por garantir o funcionamento dos conselhos. Os conselhos, por sua vez, têm a função de denunciar maus tratos e assegurar vagas em creches, por exemplo.
Conforme Carmem, há uma resolução já aprovada pelo Conanda, mas que ainda não foi assinada pelo presidente, que prevê punição às prefeituras que não derem estrutura adequada ao funcionamento dos conselhos tutelares.
Uma pesquisa divulgada pela Agência Nacional dos Direitos da Infância (Andi), com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta que nos últimos quatro anos o número de conselhos tutelares aumentou 24% no País. No entanto, o texto indica que a falta de estrutura ainda é o principal dos problemas dos conselhos. A pesquisa mostra ainda que o Maranhão é o estado com mais cidades sem conselhos tutelares: 48 dos 217 municípios não têm o órgão.
CASTIGOS CORPORAIS – A presidente do Conanda destaca também que o governo federal trabalha em um anteprojeto de lei, com participação de vários ministérios, que prevê punição a castigos corporais, tema que, segundo ela, também é tratado genericamente no ECA.
“Os castigos corporais ocorrem não somente no âmbito familiar, mas temos situação muito invisível, mas de gravidade. Não só de palmadas. Crianças que chegam com queimaduras. Situações que ocorrem em instituições de atendimento, escolas, abrigos, unidades de internação”, destaca.
“O novo projeto aprimora o estatuto, que aborda os maus tratos de forma genérica. No nosso Código Civil há previsão de punição para castigos imoderados. (…) A gente prevê nos próximos dias enviar o texto ao Congresso”, diz Carmem.
O juiz Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, integrante da Coordenadoria da Infância do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que atualmente assessora o ministro Cezar Peluzo no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diz que uma regulamentação sobre castigos corporais não resolve o problema. “A violência que tem que ser tratada enquanto educação. Não adianta ameaçar os pais para que parem de bater. Que se eduque a nova geração, que dá resultado muito maior”.