As sociedades capitalistas em que o mercado é a instância fundamental de coordenação da vida coletiva geraram uma economia baseada na autonomia e nas iniciativas dos indivíduos “livres” e por isto em muitos sentidos anárquica. Frente às grandes patologias daqui decorrentes se pensou que sua alternativa deveria consistir em libertar as forças produtivas da tirania dos poderes imprevisíveis do mercado e substituí-lo por uma administração política dos meios de produção. Nestas sociedades, o Estado deve substituir o mercado na tarefa de coordenação da vida social, a estatização substituía a propriedade privada dos meios de produção capitalistas.
Conhecemos hoje o resultado desta experiência: ela gestou sociedades marcadas por conquistas importantes e que não deveriam ser esquecidas, mas organizadas a partir do monolitismo do poder de decisão no Estado, na economia, nas empresas, numa palavra em todas as esferas da vida humana o que na realidade negou o ser humano como sujeito ativo na economia e na política.
Falou-se então de totalitarismo, para exprimir esta gigantesca concentração de poder, em que o Estado, em última instância, o partido e suas elites burocráticas, não só não desapareceram, mas, através de um crescimento gigantesco, literalmente engoliram a sociedade e as pessoas. Aqui o socialismo era sinônimo de “estatismo”.
Neste “modo estatista e totalitário” de organizar a vida coletiva, o Estado se apropriou de todas as forças produtivas em nome da sociedade e se transformou no único sujeito praticamente existente no lugar dos setores privados, uma vez que a negação do individualismo, hegemônico nas sociedades marcadas pela lógica da competição, desembocou na negação do próprio indivíduo, reduzido a uma parte do todo coletivo, excluindo os indivíduos e a sociedade das decisões e da gestão da vida coletiva, ainda com o complicador de ter conservado o horizonte materialista de realização da vida humana pela acumulação de bens materiais.
O único, que mudou aqui, foram os meios para a consecução deste ideal. O mérito do modelo estatista consistiu em mostrar que a tentativa de fazer do Estado a fonte de todas as decisões, e dar-lhe o controle de todo o processo econômico e de toda a vida social, não levou os seres humanos a se fazerem sujeitos de seu próprio desenvolvimento.
É por isto que esta forma de sociabilidade foi denominada de “capitalismo sem capitalistas” na medida em que se conservava quase tudo da forma anterior e simplesmente se substituía a propriedade capitalista pela propriedade do Estado, um socialismo de Estado, esvaziado de seu sujeito principal, a sociedade, e não uma configuração coletiva que se radica numa sociabilidade consciente, ativa e participativa em todas as suas dimensões, ou seja, que possa garantir a todos os que trabalham a participação no controle e na gestão dos bens produzidos. Trata-se de um socialismo esvaziado de seu sujeito principal. Daí porque estas sociedades se caracterizaram pelo planejamento geral e pela concentração de poder. Por uma série de fatores, elas, além de totalitárias, geraram economias de escassez de bens de consumo e serviços, uma experiência muito importante para nos alertar que certamente o caminho alternativo às sociedades dominadas pelo capital não consiste na centralização de todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado.
Manfredo Araújo de Oliveira –Doutor em Filosofia, professor da UFC e presidente da Adital