Nossa região é o reino dos paradoxos

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Vejamos o caso do Brasil: paradoxalmente, Garrincha, arruinado desde a infância pela miséria e pela poliomielite, nascido para a desdita, foi o jogador que mais alegria deu em toda a história do futebol; e, paradoxalmente, Oscar Niemeyer, que já completou cem anos de idade, é o mais novo dos arquitetos e o mais jovem dos brasileiros.


Peguemos o caso da Bolívia: em 1978, cinco mulheres enfrentaram uma ditadura militar. Paradoxalmente, toda Bolívia riu delas quando iniciaram sua greve de fome. Paradoxalmente, toda Bolívia terminou jejuando com elas, até que a ditadura caiu.


Uma delas: Domitila Barrios, em uma assembléia de operários das minas, ela se levantou e fez todos se calarem ao dizer: “nosso inimigo principal não é o imperialismo, nem a burguesia, nem a burocracia. Nosso inimigo principal é o medo, e o levamos dentro de nós. E quanta razão tinha.


A Europa aprovou a lei que converte os imigrantes em criminosos. Paradoxo dos paradoxos: a Europa, que durante séculos invadiu o mundo, fecha a porta nos narizes dos invadidos, quando retribuem a visita. E essa lei foi promulgada com uma assombrosa impunidade, que seria inexplicável se não estivéssemos acostumados a ser comidos e viver com medo.


Ao longo de toda a primeira metade do século XIX, um venezuelano chamado Simon Rodríguez andou pelos caminhos de nossa América, no lombo de mula, desafiando os novos donos do poder: vocês – clamava don Simon – vocês que tanto imitam os europeus, por que não os imitam no mais importante, que é a originalidade? Paradoxalmente, por ninguém era ouvido este homem que tanto merecia ser ouvido. Paradoxalmente, o chamavam de louco, porque tinha o bom senso de acreditar que devemos pensar com nossa própria cabeça, porque tinha o bom senso de propor uma educação para todos e uma América de todos, e dizia que aquele que não sabe, qualquer um o engana e aquele que não tem, qualquer um o compra.


Quinze anos depois da morte do louco Rodríguez, o Paraguai foi exterminado. O único país hispano-americano verdadeiramente livre foi paradoxalmente assassinado em nome da liberdade.


Um século depois da guerra do Paraguai, um presidente do Chile deu sua palavra, e se deu. Os aviões cuspiam bombas sobre o palácio do governo, também metralhado pelas tropas de terra. Ele havia dito: – eu, daqui, não saio vivo. Na história latino-americana é uma frase freqüente. Foi pronunciada por uns quantos presidentes que depois saíram vivos, para continuarem pronunciando-a. Mas, essa bala não mentiu. A bala de Salvador Allende não mentiu.


E saltando a cordilheira, me pergunto: Por que será que Che Guevara, o argentino mais famoso de todos os tempos, o mais universal dos latino-americanos, tem o costume de continuar nascendo? Paradoxalmente, quanto mais o manipulam, quanto mais o traem, mais nasce.


Quero culminar a viagem evocando um homem. Paradoxalmente, ele morreu há um século e meio, mas continua sendo meu compatriota mais perigoso. Tão perigoso é que a ditadura militar do Uruguai não pôde encontrar uma única frase sua que não fosse subversiva, e teve que decorar com datas e nomes de batalhas o mausoléu que ergueu para ofender sua memória. A ele, que se negou a aceitar que nossa pátria grande se rompesse em pedaços; a ele, que se negou a aceitar que a independência da América fosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres, a ele, que foi o verdadeiro primeiro cidadão ilustre da região, dedico esta distinção, que recebo em seu nome. E termino com palavras que lhe escrevi há algum tempo: 1820, Paso del Boquerón. Sem voltar a cabeça, você afunda no exílio. Você vai, vencido, e sua terra fica sem alento. Porque você, don José Artigas, general dos simples, é a melhor palavra que ela pronunciou.

Eduardo Galeano – último dia 3/8 recebeu título de primeiro Cidadão Ilustre do Mercosul