Os debates sobre o Código Florestal manifestaram certo paradoxo a que nossa imprensa várias vezes chamou atenção: por um lado, sabe-se que a virulência dos debates revela que a ele subjazem enormes interesses econômicos; por outro lado, a impressão é que este debate apagou as diferenças ideológicas, pois há representantes das diferentes concepções de sociedade em ambos os lados. O que não se diz é que isto só se explica porque o fundamento desta postura é uma determinada forma de conceber a realidade, de modo muito especial a natureza e sua relação com o ser humano que constitui o alicerce do projeto moderno de civilização e que abarca em seu seio diferentes concepções a respeito da forma de organizar a vida coletiva. Daí porque é possível como se afirma que certa esquerda se alie com a direita.
Para compreender o fundo deste debate se faz necessário distinguir duas posições básicas: o “conservacionismo” que é a posição segundo a qual a natureza não tem valor senão como um instrumento a serviço do homem e o “preservacionismo” que é a concepção que justifica a proteção da natureza pelo valor que esta possui em si mesma. Isto significa dizer que para o conservacionismo os processos naturais possuem unicamente um valor instrumental: eles constituem os meios de que dispõe o ser humano em seu próprio benefício enquanto que para a segunda posição eles possuem valor intrínseco independentemente de sua utilidade para o ser humano, portanto, valem por si mesmos, pelo que são.
Antes de tudo, a natureza mostra-se agora como uma construção teórica (constituição e validação de seu sentido) e prática (tecnologia) do ser humano, que a ele se contrapõe radicalmente como matéria-prima de seu conhecimento e de sua ação, o que lhe vai dar a sensação de ser o “Senhor” (mestre) e “Possuidor” da natureza (Descartes). A questão aqui não é mais de expressar a constituição intrínseca da natureza, mas antes de transformá-la num simples algo quantificável, expressável numa linguagem matemática, a nova gramática do mundo e explorável economicamente.
Com isto se abre o espaço para um novo tipo de saber da natureza, o das novas ciências: não se trata mais de contemplar as coisas enquanto inseridas na ordem cósmica, mas de possibilitar a dominação do ser humano sobre elas. A natureza, então, nesta ótica, se transforma “exclusivamente” num meio para a satisfação das carências humanas, o instrumento de efetivação de seus desejos, o que conduz à sua sistemática dominação e destruição. Na concepção alternativa,tudo é portador de uma constituição própria a partir de onde se estabelecem seu lugar no universo e o parâmetro daí decorrente do desenvolvimento de suas potencialidades.
A ética que brota daqui exprime que as ações são boas na medida em que se radicam em valores de base e não entram em contradição, em última instância, com a totalidade da realidade, com o universo. Neste sentido, a ética não pode limitar-se a uma teoria da sobrevivência do indivíduo, mas é uma “teoria da integração” do indivíduo com todos os outros seres humanos e com a natureza. Trata-se da exigência de construção comum de outro modelo de configuração da vida individual e social, de outro modelo de produção e de consumo radicado nos valores da cooperação, da integração e da interconexão entre os seres humanos e com os seres naturais.
Manfredo Araújo de Oliveira – Doutor em Filosofia, professor da UFC e Presidente da Adital